“Quem salva o autista é a mãe”! A mãe nunca abandona! Afirmou Thiago Castro, renomado médico e escritor, especialista em autismo, recentemente em um podcast.
Os pais que me perdoem, mas esta afirmação está estatisticamente carregada de verdade, salvo raríssimas exceções! No Brasil, cerca de 78% dos pais abandonam mães de crianças comdeficiências antes dos filhos completarem 5 anos de vida, estes dados foram divulgados pelo Instituto Baresi em 2012.
Sem dúvidas, é uma porcentagem assustadora, mas o abandono coletivo, generalizado, consegue ser ainda mais assustador! Principalmente quando este é praticado por aqueles que tem, em seus ombros, o dever e a autoridade para julgar as situações fático jurídicas que envolvam divórcio, guarda e alimentos para crianças autistas.
Por vezes, nos deparamos com decisões judiciais dissociadas com a realidade social destas mães abandonadas e de suas crianças. Ignoram a complexidade do autismo, da necessidade terapêutica intensiva, do alto custo do tratamento, medicamentos, e principalmente, da necessidade de dedicação em tempo integral ao filho que necessita de cuidados especiais.
A rotina de uma mãe atípica é sobremodo pesada, exaustiva e na maioria dos casos, incompatível com a vida profissional. Muitas não conseguem trabalhar e isso afeta diretamente sua capacidade de arcar com a obrigação alimentar dos filhos.
Nestes casos específicos, a título de exemplo, seria irrazoável, e demasiado injusto, negar alimentos a ex cônjuge, sob o simplório argumento que a mesma é saudável e tem totais condições de trabalhar, cuidar da criança com deficiência, e ainda prover financeiramente em proporções idênticas as do pai, que mal visita o filho nos finais de semana.
É certo que algumas decisões judiciais nesse sentido, são reflexo de uma defesa precária e tecnicamente incapaz de apresentar um conjunto probatório convincente. No entanto, não é tão raro vermos decisões que são em tese, reflexos de análises perfunctórias e alheias a realidade nua e crua dos fatos.
Ainda que a defesa grite nos autos e as provas documentais sejam robustas, em casos de demandas complexas, a inspeção judicial é ferramenta indispensável na busca pela verdade, que por sua vez é o método, o caminho que leva a Justiça, parafraseando o jurista Mario Goulart Maia (Hermenêutica Judicial – 2021) “Sem a busca pela justiça, o objetivo da função jurisdicional se perderia.
A inteligência do Art. 481 do Código de Processo Civil, abre a possibilidade da realização da Inspeção Judicial, para que o Magistrado tenha a oportunidade de se aproximar das partes, de vivenciar o contexto narrado nos autos, com o objetivo de esclarecer fatos relevantes para a decisão do caso concreto.
Não há dúvidas, que todas as discussões inerentes ao Espectro do Autismo são de natureza complexa e certamente devem ser analisadas com muito rigor, afinal, estamos falando dos direitos fundamentais de crianças com deficiência, hiper vulneráveis, fato que por si só justificaria uma fiscalização in locu.
Ademais, o Art. 20 da LINDB, deixa claro que o Julgador deve considerar as consequências práticas da sua decisão. Não consigo imaginar melhor forma de visualização destas consequências, que a inspeção judicial dos casos complexos!
Bastariam algumas horas acompanhando o dia a dia de uma mãe de autista, para entenderem o por que a maioria não consegue um trabalho formal. Aquelas mães cujos filhos tem acesso a tratamento, passam o dia peregrinando de clínica em clínica para cumprir a carga horária intensiva de terapias, muitas são chamadas na escola, dia sim, dia não, para buscarem seus filhos porque poucos sabem lidar com ao autismo no contexto escolar.
Veriam muitas mães literalmente machucadas por tentarem conter os filhos diante de uma crise sensorial, tornam-se verdadeiros escudos humanos a fim de evitarem que se machuquem. Sentiriam a dor e o desespero daquelas que não conseguem alimentar suas crianças que tem seletividade alimentar grave.
Presenciariam a vida solitária, abnegada, e dedicada exclusivamente a sobrevivência do filho. Que bom seria, se os magistrados pudessem se conscientizar da indispensabilidade desta averiguação presencial, nos casos que envolvam direitos de pessoas com deficiências, certamente a luz da justiça iluminaria suas futuras decisões.
A constatação da ausência de inspeção judicial nas demandas complexas impulsionou o CNJ a publicar este ano, um Guia Prático sobre o tema, cujo objetivo primário é incentivar essa pratica, tornando a prestação jurisdicional mais eficaz e coerente.
Há quem pense ser utópico diante do cenário atual, esperar que os julgadores, de oficio, ou a requerimento das partes, optem por deixar seus gabinetes, e sair visitando as famílias atípicas em diferentes contextos.
No entanto, o nosso dever é lutar cada vez mais para que o conceito de uma jurisdição realista, próxima da verdade dos fatos, seja uma prática constante, promovendo efetiva aplicação da justiça.
LETÍCIA AMARAL – Advogada, mãe atípica e presidente da Associação das Mães em Movimento pelo Autismo – MMA